«(…)Queria escrever-te/ um guia para o mundo da evidência, com a sua exacta cartografia/de emoções, e encontrar nas tuas mãos a linha para o seu centro,/onde um fulgor de secretos vulcões se acende. Em vez disso, / dou-te este poema; e sei que dele irá correr o rio/ que nasce do teu riso de fonte.(…)»
Nuno Júdice, Cartografia de emoções, Dom Quixote, p.49
Na semana que passou os dias 17 e 21 foram marcados pela poesia – morreu um poeta, celebrou-se a poesia, relembrou-se o poeta que partiu, redescobriram-se ou revisitaram-se os seus poemas. Nuno Júdice era o nome do poeta. E a um dos seus livros devo metade do nome do blogue, como explico aqui.Daí que a epígrafe deste texto só possa ser um excerto de um dos poemas desse volume de textos. Que li e reli vezes sem conta, que sublinhei e assinalei, que dei a ler.
A meio da semana, e a anunciar-se de diversas formas, chegou a primavera. E com ela a lembrança de poemas de Nuno Júdice que se centram nesta estação. Mas a minha semana ficou também marcada pela descoberta da poesia de uma autora cuja biografia estou a ler – Maria Teresa Horta (A Desobediente, de Patrícia Reis, é o título da biografia). E por isso este artigo vai ser povoado pelas palavras destes dois escritores de poemas. Como forma de assinalar o dia 21 de março, Dia Mundial da Poesia. Sem esquecer a primavera, que atravessou a semana e as leituras dos textos que aqui deixo.
As imagens que escolhi obedecem a um único critério – parecem, a meus olhos, instantâneos poéticos, de uma espessura que ultrapassa o que se mostra.
O poeta
Trabalha agora na importação e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta própria,
um desses que preenche cadernos de folha azul com números
de deve e haver. De facto, o que deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol e exportar as nuvens. Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu; e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia interrupção da morte.
Nuno Júdice, Poesia Reunida, Dom Quixote, pp.1026
Primavera
Esta é a estação das horas canónicas, dos
sinos que movem o dia nos seus traços divinos, da música
desses instantes que se metem pelos poros
da alma, fazendo ressoar a eternidade. Não sei
desde quando é assim: a primavera, que nasce no breve
equilíbrio entre os pólos, assiste ao nascimento
de flores que correspondem a uma imagem
da perfeição. Vejo-as imóveis nas naturezas
mortas, nos jarrões chineses de antigas
dinastias, nos pratos de rebordos esbeiçados
pelo tempo. São as flores que não atraem as abelhas – as mais
belas. No entanto, quando colho as outras flores, vivas,
e as meto dentro de livros, fechando-os entre outros livros
para que sequem mais depressa, imagino o diálogo
que se poderá travar entre as palavras e as pétalas, o pólen
e essa abstracta espuma das sílabas, o caule partido a meio
e o verso quebrado pouco antes do fim, o suficiente
para que o ritmo imponha a sua sombra. Um claustro
vegetal, cujas colunas são construídas
a partir da terminologia
botânica, das exóticas designações de herbários
amarelecidos, de rostos enrugados como as folhas
mais perenes. O que sei, então,
é isto: que o essencial resiste no coração
da primavera, e que o seu preço é este canto
de pássaros que vem não sei de onde, como
a luz da manhã quando a névoa
se desfaz.
Nuno Júdice, Poesia Reunida, Dom Quixote, pp.984-985
Errante
Ninguém pode imaginar
quanto sou
atenta, perdida, errante
percorrendo sem disfarce
estes meus
dias sangrantes
tão perdida, tão só
e tão distante
Maria Teresa Horta, Paixão, Dom Quixote, p.76
Exercício de cartografia
Não sei por que é que nos lembramos de certos lugares,
às vezes, à noite; nem por que é que sentimos a falta
desses lugares – a não ser que seja que algo da nossa vida,
de súbito, nos falte. Sim: é quando a noite se começa a pôr,
quando um sentimento antigo cai com o sol no horizonte,
quando os olhos deixam de ver o presente, a luz do dia,
o rosto que nos interroga, que certas imagens descem
talvez da memória, talvez do esquecimento que a substitui,
e formam essa paisagem que, parece, espera apenas um
movimento para se animar; e nada faço, e ela desaparece.
Que país assim saltou do mapa; e se desfez num atlas
subjectivo onde as fronteiras não exigem mais do que o passa-
porte que a vida nos passa? Desapareceu comigo lá dentro;
e eu próprio não sei se fico ou se fujo nessa terra de ninguém,
perseguido por uma sombra que se confunde comigo. Não
a olho; nem ouço o aviso que me impede de alcançar a outra
margem, onde m esperas, como se hoje fosse ontem,
ou o vento tivesse deixado de soprar na primavera obscura
que herdei da tua morte. Habito a cor inacessível desses
livros fechados; e convivo com azuis, verdes, castanhos,
roubados à terra pelos olhos que perdi no teu rosto ausente.
Sobretudo, pedi a noção das distâncias: entre ti e mim, entre
o teu tempo e este tempo em que acordo, com restos de
nuvens no ar e o ruído de uma cidade habitual. Ainda se este
vazio que aperto nas mãos fosse um resto da tua passagem…
ou se a água negra do rio nocturno fosse a mesma em cujo
olhar coincidimos…Porém, liberto-me de ti sob o tampo
da manhã; e dou comigo a desenhar as linhas da mão,
mesmo as que se interrompem no limite dos dedos.
Nuno Júdice, Poesia Reunida, Dom Quixote, pp.502-503
Interior
Tens os olhos verdes
da memória
Enigmáticos, equívocos
de desejo e desamores
Debruçados nos narcisos
das águas interiores
Maria Teresa Horta, Paixão, Dom Quixote, p.57
Guia de conceitos básicos
Use o poema para elaborar uma estratégia
de sobrevivência no mapa da sua vida. Recorra
aos dispositivos da imagem, sabendo que
ela lhe dará um acesso rápido aos recursos
da sua alma. Evite os atolamentos
da tristeza, e acenda a luz que lhe irá trazer
uma futura manhã quando o seu tempo
se estiver a esgotar. Se precisar de
substituir os sentimentos cansados
da existência, reinstale o desejo
no painel do corpo, e imprima os sentidos
em cada nova palavra. Não precisa
de dominar todos os requisitos do sistema:
limite-se a avançar pelo visor da memória,
procurando a ajuda que lhe permita sair
do bloqueio.Escolha uma superfície
plana: e deslize o seu olhar pelo
estuário da estrofe, para que ele empurre
a corrente das emoções até à foz. Verifique
então se todas as opções estão disponíveis: e
descubra a data e a hora em que o sonho
e converte em realidade, para que poema
e vida coincidam.
Nuno Júdice, Guia de conceitos básicos, Dom Quixote, p.135
E para terminar, uma música, um videoclip que, para além da fotografia, da música, dos planos, é um poema – Indigo night, de Tamino.
«Imagine, the girls around town assemble /The traveler’s son they come askin’/ Where he came from/ ‘Cause they’ve watched him/ Washing his face near the pond /A curious boy, and they wonder/ Where he came from/ He says:/ “I, I have seen the world’s most beautiful places,/ still I feel as If I’m a walking machine/ Watching it all through a screen,/ there ain’t nothing in between/ To me, this might as well not be real”/ Imagine, the girls take him up on a hillI/ It’s an indigo night, there’s a chill/ The boy is confused but he’s still(…)» Tamino
Boa semana e muitas possibilidades de poesia!!!!
ASM