+ do que 1
Tem sido assinalado aqui, quase desde que este blogue surgiu. O ano passado foi assim: https://cartografiapessoal.wordpress.com/2014/03/23/21-marco-dia-da-poesia/
Este ano não é exceção, por isso esta seleção de poemas e fotografias. Pensei nisto para este ano.
Também cumpri uma tradição pessoal neste dia: comprar um livro de poemas. O poema e o poeta escolhidos vão fechar este texto. Escolhi poemas que convocam lugares, espírito dos lugares, emoções ditas em formas de palavras. Quando é possível e por quem tão bem sabe dizer.
Para além do óbvio critério das minhas preferências pessoais, acresce o das minhas revisitações destas palavras, motivadas pelas minhas recentes viagens. Havia ainda que procurar nos meus arquivos fotográficos as imagens para os poemas.
O resultado é este que aqui deixo, o objetivo é celebrar a POESIA.
MORTE EM VENEZA
De muitas coisas se pode morrer
em Veneza
De velhice de susto
de peste
ou de beleza
Jorge de Sousa Braga
LISBOA
Digo:
«Lisboa»
Quando atravesso – vinda do sul – o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do meu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas –
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
– Digo para ver
Sophia de Mello Breyner Andresen
«IN SUL PASSO D’ARNO»
Debaixo passa o Arno.
Passam as mãos,
o silêncio,
as palavras,
uns olhos muito verdes,
muito azuis,
uma criança.
Passa o Arno.
Lento, magro, sujo:
passa.
Se fora limpo e claro
e rumoroso,
seria ainda o Arno:
também passava.
Eugénio de Andrade
GRANADA
Granada, calle de Elvira,
donde viven las manolas,
las que se van a la Alhambra,
las tres y las cuatro solas.
Una vestida de verde,
otra de malva, y la otra,
un corselete escocés
con cintas hasta la cola.
Las que van delante, garzas
la que va detrás, paloma,
abren por las alamedas
muselinas misteriosas.
¡Ay, qué oscura está la Alhambra!
¿Adónde irán las manolas
mientras sufren en la umbría
el surtidor y la rosa?
¿Qué galanes las esperan?
¿Bajo qué mirto reposan?
¿Qué manos roban perfumes
a sus dos flores redondas?
Nadie va con ellas, nadie;
dos garzas y una paloma.
Pero en el mundo hay galanes
que se tapan con las hojas.
La catedral ha dejado
bronces que la brisa toma;
El Genil duerme a sus bueyes
y el Dauro a sus mariposas.
La noche viene cargada
con sus colinas de sombra;
una enseña los zapatos
entre volantes de blonda;
la mayor abre sus ojos
y la menor los entorna.
¿Quién serán aquellas tres
de alto pecho y larga cola?
¿Por qué agitan los pañuelos?
¿Adónde irán a estas horas?
Granada, calle de Elvira,
donde viven las manolas,
las que se van a la Alhambra,
las tres y las cuatro solas.
Federico Garcia Lorca
FOGLIO D’INVERNO
O doge não me recebeu na grande praça
estava então em combate
num porto longínquo do oriente
que depois se perdeu
Senhor de mim aluguei um quarto
num hotel desconhecido
passei muitos dias
sem falar a ninguém
era uma sombra
e invadia a altas horas
as ruas estreitas do canal
Também me acontecia
adormecer numa gôndola
e em sonhos chegar a lugares
que depois incessantemente buscava
na laguna
Nesse inverno Leonardo
pintava com sucesso
na academia
mas não o procurei
José Tolentino Mendonça
O MOLHE
Não há lugar no mundo que mais ame e me distraia
do que este. Onde é que a solidão jamais me tolhe
e mais me sinto em boa companhia do que no molhe
de São Carlos, e onde mais adoro as ondas e a praia?
Vejo navios cujos nomes recordo
desde a infância. Como então indolentes e agitados
– talvez esperando do embarque a hora –
os grumetes numa azáfama, os ensacados
sob os toldos, os caixotes para bordo
dum veleiro, eram um dia o começo
das riquezas que viriam, com que deslumbraria
a multidão que viesse acolher o meu regresso,
belos presentes aos meus fiéis daria.
Nem para um regresso assim eu deixaria
o molhe de São Carlos, esta extrema margem
de Itália onde a vida é ainda guerra;
não sei, longe daqui, tornar alegre a imagem
do labor, meus dias quase felizes,
tão bem enterradas tenho as raízes
nesta minha terra.
Não levarás a mal, amiga minha, se a paixão
tamanha, pelo lugar onde nasci, sinta empenhado.
Sabes que bem mais diverso, e mais atribulado
porto do que este é afinal o nosso coração.
Umberto Saba
VENEZA
De cada vez que te busco
Sei do que venho ao encontro
Como se fosses o útero
De onde hei-de nascer de novo
David Mourão-Ferreira
E esta foi a escolha para este dia – um poema de Gonçalo M.Tavares, do livro de poemas que comprei. O livro não tem um nome, tem um número para o identificar, é o “1”, publicado pela Relógio d`Água. Gosto muito deste poema. Vai ficar aqui.
A PROVA NA POESIA
Queres acreditar?
Nenhuma garantia basta.
Por exemplo: não há narrativas
que levem a prescindir
da proximidade do mar.
O mar é material: exige a tua presença.
Também assim com a poesia.
Como um peregrino:
vai rápido ver o verso.
Gonçalo M.Tavares
ASM